Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit.
Nasci em Milão, em uma família de torcedores comedidos do Milan na década de 1990, sem fanatismo, nos anos em que o Milan era treinado por Sacchi e Capello, que colocou em campo Marco Van Basten, Marcel Desailly, Dejan Savicevic e Franco Baresi, naqueles anos se tornando o time lendário que nunca havia sido até então. Ainda assim, tenho uma lembrança vaga daquelas copas e campeonatos. São como lembranças de livros e da infância, histórias transmitidas como que pela tradição oral. O futebol e eu, Milan e eu, gostávamos muito um do outro, mas não tínhamos intimidade. Nós nos entendemos de verdade em 1997, quando o grande Milan estava acabado e foi para o campo confuso, com uma escalação nova, mas falha. A minha paixão pelo Milan realmente começou depois de ter perdido para o Juventus – 6 a 1. Lembro-me bem. Lembro-me do canal de TV Tele+, do sofá de estampa colorida, de minha mãe lavando a louça e esticando o pescoço para fora da cozinha, perguntando como aquilo podia estar acontecendo e dizendo como era vergonhoso. Porém não sei dizer o porquê, no máximo sou capaz de conjecturar que inconscientemente estava aguardando o colapso daquele ciclo iniciado anteriormente, um momento de declínio e possível reconstrução, para poder desfrutar de uma história que fosse completa e contemporaneamente minha, uma história na qual não fosse simplesmente o último a chegar depois da sequência de pais, avôs ou adultos. Nesse contexto e a partir desse momento, cresci com apenas um capitão, não o Franco Baresi (o antigo capitão), mas Paolo Maldini. Começando a partir desse annus horribilis para o futebol, consegui enxergar o Meu Ciclo do Milan, que foi o do time treinado por Carlo Ancelotti (embora sem esquecer o time treinado por Alberto Zaccheroni) e desenvolvi uma cosmogonia muito precisa que era e é minha, não a dos meus pais ou avôs. Paolo Maldini ocupou e ocupa o topo desse panteão. Sempre me senti afortunado e privilegiado toda vez que comparava Meu Capitão, o símbolo do Meu Ciclo, com o capitão deles, o símbolo de seu ciclo inexistente (na época): Javier Zanetti.
Como disse, antes de minha epifania, o futebol era um mero acessório na minha pré-adolescência. Preferia o basquete de Michael Jordan e Hakeem Olajuwon ou a Fórmula 1 de Jean Alesi e Damon Hill. Mas em 1995 tinha um jogador que eu gostava em particular. Lembro-me dele porque as crianças (eu tinha nove anos) se imaginavam como sendo jogadores ao jogar bola. Jogando como zagueiro nos jogos da escola, um punhado de crianças contra outro, quando não me via como Paolo Maldini, via me como ele, um argentino jogando para o Inter, com o rosto de um herói de gibi e caricaturado: queixo trapezoidal, maxilar quadrado, maçãs do rosto protuberantes e olhos e nariz formando uma cruz. Javier Zanetti, uma das muitas aquisições feitas por Massimo Moratti, o novo presidente do Inter e filho de Angelo Moratti, também presidente do Inter e vencedor de três Campeonatos, duas Ligas dos Campeões e duas Copas Intercontinentais. A história de Zanetti jogando no exterior com Sebastián Pascual Rambert, El Avioncito ou Pascualito, e como a Independiente recusou Zanetti como atacante é bem conhecida nos dias de hoje, mas não em 1995. Mesmo que fosse, provavelmente não seria de meu conhecimento na época. Eu gostava de Zanetti sem conhecê-lo. Gostava de sua cara limpa, não no sentido figurado, mas puramente estético, um rosto impossível de ser enquadrado em uma determinada faixa etária, que fugia às características típicas de idade. Jovem, mas quão jovem? Ainda hoje ele continua igual. Dois anos mais tarde, estava para virar um verdadeiro torcedor do Milan e a cara limpa de um jogador passou a chamar menos minha atenção do que sua habilidade em campo e as cores da camisa que vestia todo domingo. Zanetti continuou, destemido, a vestir as listras pretas e azuis.
Javier Adelmar Zanetti se aposentou do futebol como símbolo do Inter e como recordista do Inter e também da seleção argentina, embora não tenha jogado em uma das duas últimas Copas do Mundo de sua carreira, a de 2006 na Alemanha e a de 2010 na África do Sul. Como sempre acontece quando ícones, referências ou recordistas se aposentam, enchem de editoriais, tributos, relatos emocionados na TV e despedidas chorosas.
Fiquei comovido vendo os olhos de Pupi durante a última partida em San Siro, Inter x Lazio no dia 10 de maio de 2014 (particularmente comovido durante uma cena, talvez aleatória, pouco antes do apito final, mostrando Zanetti olhar para cima, para onde sei que tem um cronômetro, talvez pensando algo como “estes são todos os minutos que restam a Zanetti nesta vida em particular”). Eu, que sempre me senti afortunado e privilegiado por torcer por um time que tinha um jogador do calibre de Paolo Maldini como capitão, perguntei a mim mesmo se, apesar de todo o alvoroço, o tributo e a despedida, é justificável acreditar que Javier Zanetti possa ser lembrado como um dos jogadores de futebol mais proeminentes.
Devo ressaltar que, enquanto escrevo, não o faço como um torcedor. Como não podia deixar de ser, com o passar dos anos, meu “apoio extremo” empalideceu e se diluiu em uma paixão genuína por futebol, uma paixão que me leva a apreciar o feito em vez da camisa, sempre. Enfim, o que significa ser forte? O que faz um jogador ser lembrado? Meu pensamento sincero é: ser extraordinário, do latim extraordinarius, fora do comum, que vai além do padrão. Os jogadores que se saem melhor do que outros em pôr abaixo as portas de aço do tempo, que são as mesmas do esquecimento, são aqueles capazes de feitos únicos, impossíveis de serem transferidos para outros corpos ou outros contextos - porque o contexto também importa. Maradona é um desses jogadores e, como ele, talvez apenas Ronaldo. Pelé é, assim como Cruyff e Zidane. Tem o Totti e Del Piero, Beckham, Owen, Maldini, Thuram, Cannavaro, Buffon, Rivaldo, Figo, Messi, Cristiano Ronaldo, Ibrahimovic, Riquelme, Henry, Bergkamp, Mancini e muitos e muitos outros. Alguns destes são referências. Todos deveriam receber, in memoriam ou por ocasião de sua aposentadoria, passagens com flores espalhadas e poemas épicos comemorativos.
A primeira entrevista italiana em vídeo com Javier Zanetti foi realizada no dia de sua apresentação no Terrazza Martini, na Piazza Diaz, em Milão, em um antigo centro da cidade que mistura parte Risorgimento, parte Fascista. A entrevista é fraca, por culpa do jornalista, e um tanto absurda. O jornalista não aparece e Javier está vestindo um terno trespassado comprado em Lanús e uma gravata azul adornada com cavalos de corrida. Os dois conversam em espanhol e Zanetti diz que ainda não tinha falado com ninguém do time, nem mesmo com o técnico Bianchi. Ele diz que com humildade podem alcançar bons resultados e que tem orgulho de estar no Inter. O jornalista pergunta de que parte da Itália seus bisavôs eram, já que Zanetti tem raízes italianas. Ele responde não saber e que nunca chegou a conhecê-los. O jornalista pergunta se ele nunca tinha conversado com os pais sobre suas origens. Ele não sabe nem se eram da região do norte, centro ou sul da Itália? Zanetti diz que não. O jornalista faz pressão e diz que Zanetti é um sobrenome italiano do norte. Ele diz, “veja bem, eu realmente não sei”. Depois o jornalista pergunta: “você é de Buenos Aires?” “Sim”. “Cidade ou província?” “Avellaneda”. “Ah, Avellaneda”. “Sim”. “Independiente?” “Sim, eu sou de Independiente”. “Foi lá onde você começou a carreira?” “Sim, lá”. “Bom, obrigado”.
Javier Zanetti jogou pelo Independiente (no time de base) entre 1982 e 1989, depois disseram a seus pais: Zanetti é muito magro, sentimos muito, mas ele nunca será um jogador de futebol. Ele voltou a trabalhar como pedreiro com o pai, ganhou um pouco de peso e, dois anos depois, voltou ao futebol para o Talleres, onde fez sua estreia profissional em 1992. Depois passou para o Banfield na primeira divisão ganhou nota 10. Dois anos mais tarde, estava no Inter, com um terno trespassado bege parecendo tímido e entediado. Poucos dias depois de sua chegada, o jornal Corriere della Sera já escrevia: “Zanetti demonstrou ser muito superior a todos em termos de condicionamento físico”, embora depois tenha voltado atrás declarando: “Sem comparação com o passado e muito menos com Brehme, mas oferece ótimo dinamismo a serviço do time”. Seu condicionamento físico e corrida incansável eram, desde o início, os traços mais distintivos de Javier Zanetti. Um outro traço foi notado um ano depois em um artigo de novembro de 1996, novamente no Corriere della Sera, que dizia: “Um de seus maiores defeitos é o fato de ser um fominha incorrigível”. Porém, naquele jogo, Inter contra Verona em novembro de 1996, Zanetti marcou seu terceiro gol em oito jogos, com um Inter no topo treinado não por Bianchi, mas Hodgson. Esses seriam os seus únicos três gols da temporada e, somados aos dois do campeonato anterior, formaram cinco. Em todos os 19 campeonatos jogados pelo Inter, eles formam quase 40% de seus gols, que até hoje estão em 12. Ele jogou na Copa da UEFA de 1997, mas o time perdeu contra o Schalke 04. Ele venceu no ano seguinte contra o Lazio, marcando o que talvez seja o gol mais admirável de sua carreira, um voleio de fora da área que viu a bola subir e mergulhar embaixo do travessão. Daquela noite, porém, a história vai lembrar é da pedalada de um Ronaldo com 20 anos de idade, recém-chegado do Barcelona, que deixou Marchegiani desequilibrado, acabando de frente para o gol aberto. Depois disso, Javier Zanetti passou pelo que provavelmente foi o período mais sombrio de toda a história do Inter, uma época em que se tornou referência de derrotas infindáveis. Em 1998, o ano mais sombrio do período mais sombrio, o de Marcello Lippi, ele se tornou capitão pela primeira vez.
Quando todos os outros partiram, Zanetti foi o único a ficar. Será que aqueles que foram deveriam ser criticados? Não acho que deveriam. Será que aquele que permaneceu deveria ser aplaudido? Talvez, mas também não acho que deveria. No mundo do futebol, “nos bons e maus momentos” é um conceito contraproducente quando os momentos em que se está vivendo são sempre maus. Ronaldo, que jogou pelo Inter por cinco anos e ajudou a equipe a vencer a copa da UEFA, se destacando como artilheiro, saiu após um período em que a equipe não vencia mais nada. Nos anos em que Moratti foi presidente, o Inter testemunhou uma grande transferência de talentos para suas equipes, mas nenhuma chegava para realmente ficar, nenhum como Zanetti. Alguns se saíram muito mal, como Ibrahimovic, que primeiro foi para o Barcelona e depois para o Milan; Vieri para o Milan; Seedorf diretamente para o Milan, onde virou ponto de referência em campo e depois técnico; Piro, também para o Milan e depois Juventus; e Ballotelli, para o Manchester City e depois o Milan. Outros vieram e se foram sem grande trauma emocional, mas saíram para outros times e outros campeonatos - o que os olhos não veem, o coração não sente. Roberto Carlos, Simeone, Crespo, Sneijder, Eto'o. Javier Zanetti ficou e, sem qualquer grande chute de classe, mas puramente com consistência, trabalho pesado e apego ao time, conquistou os créditos principais na história do Inter. O mais importante, com base nas estatísticas: ele é o estrangeiro com mais participações na Série A; o jogador com mais participações na história do Inter; o jogador com mais vitórias na história do Inter; e um dos 19 jogadores na história do futebol a jogar pelo menos 1000 partidas.
A outra carreira de Javier Zanetti, em paralelo a do Inter e também repleta de recordes, foi na seleção da Argentina. Sua estreia coincidiu com a de Daniel Passarella como técnico, em 1994, contra o Chile, em uma partida vencida pela Selección por 3 a 0, na qual o primeiro gol, e este é um fato fascinante ainda que de pouca importância, foi marcado por Rambert, El Avioncito.
Na seleção argentina, Zanetti foi um membro regular, ponto de referência e capitão no período mais sombrio da história da equipe, que não ganhava um título sequer desde 1993. Sobressaindo-se entre as dezenas de recordes, os milhares de jogos disputados e a quantidade expressiva de números que definiram a carreira de Pupi Zanetti, uma das mais duradouras na história do futebol, está o vazio circundado pelo contorno preto de um número: zero. Pode tratar-se de apenas um zero, porém é um dos zeros que me levam de volta ao ponto central da carreira de todo jogador de futebol: o que é a memória? Quais são os feitos que levam uma pessoa à imortalidade? Ele foi eleito como Melhor Jogador de Futebol do Ano zero vezes. Nunca, nem uma vez sequer, nem depois de 2010, nem depois de ter vencido a Liga dos Campeões como capitão – um capitão que, cinco minutos antes do juiz apitar o final da partida do Inter contra Bayern Munich em Madrid, chorava aos soluços enquanto jogava, corria, fazia passes e cabeçadas. Ele enxugou as lágrimas para que não atrapalhassem a visão, uma imagem humanamente poderosa e perfeita para a galeria sentimental da torcida e do clube. Há episódios perfeitos sobre a sua dedicação, melhor dizendo, devoção aos treinos. Alguns descrevem Javier, depois de subir ao altar no dia de seu casamento e antes da recepção, perguntando à esposa Paula se ela se importava que ele desse uma corridinha. Javier que, enquanto curtia as férias em um hotel na Tunísia sem academia, fazia flexões na praia com Paula, alguns quilos em livros sobre os ombros para cumprir à risca o dever de casa para as férias passado pelos preparadores físicos do Inter. Zanetti, o homem que ficou quando todos os demais estavam indo embora; aquele que nunca teve lesões e que sempre comparecia aos treinos; aquele que chegou a pôr a filosofia da humildade e do trabalho pesado na capa de sua autobiografia (Play like a Man ou, em tradução livre para o português, “Jogar como Homem”), um livro que deveria ser incluído em um hall da fama. Ele escolheu o mais modesto dos dons futebolísticos, um que grandes nomes do futebol não possuem; na verdade, um que frequentemente evitam por ser demasiadamente comum e por demais humano: ele elevou a corrida à enésima potência. Quem sabe ele nunca tenha sido candidato a Melhor Jogador de Futebol Europeu do Ano por esse prêmio se tratar de um reconhecimento a uma singularidade que pouco tem a ver com treino e mais com a sensação experimentada com um gol ou drible inventivo, essa notável elegância artística que Javier Zanetti nunca possuiu. Ele se fez sozinho e correu mais do que qualquer um na história do futebol do Inter e da Argentina, embora esta seja uma história que ele não escreveu com um jogo próprio ou que definiu como seu traço inequívoco, distintivo e decisivo. Seu lugar na história não será ao lado dos Beckhams, Zidanes, Riveras, Maradonas, Pirlos e tantos outros. Será um lugar que ocupará sozinho, o homem da longevidade, o homem que aos 40 anos tinha mais vigor do que um de 20. Não deve ser fácil não ser dotado do talento desmedido que transforma os poucos privilegiados tão facilmente em imortais, e ter que se virar para criar tamanha imagem de si próprio e de sua trajetória. Não deve ser fácil, mas de alguma forma Zanetti conseguiu fazê-lo.